terça-feira, junho 02, 2020

UM PORTUGAL ARQUIVADO…


É verdade que Portugal é um paraíso, se comparado com alguns miseráveis locais desta pobre Terra, no entanto vezes há que mais parece o purgatório. Uma das coisas que me parece absolutamente confrangedora é esta nossa propensão para arquivar, adoramos arquivos, e tanto adoramos arquivar que começámos a arquivar pessoas.
As escolas, da creche até ao secundário, são os grandes arquivos dos mais novos, em especial dos mais pequenos que se deixam por lá nesses grandes arquivos, o mais cedo possível e se vão recolher o mais tarde que se pode, sendo que o ideal mesmo para aqueles progenitores que nada fazem excepto polir cadeiras de esplanada, era que as creches e jardins-de-infância estivessem abertos até à meia-noite e quiçá para além disso.
Habituámo-nos a isto, com a desculpa do carreirismo profissional, da sacrossanta economia ou do importante emprego, se é certo que o emprego é importante, não é porém mais importante do que as crianças, do que os nossos filhos, os pais porém parecem ter-se desabituado dos filhos, de os educar, de os aturar ou de brincar com eles, estou aqui a recordar-me de uma entrevista que vi há tempos, efeito da pandemia, um casal, destes modernaços, carreiristas, cheios de apps e gadgets, com três filhos, que de repente se viram em teletrabalho com as crianças em casa, clamavam por intervenção estatal, o ar enfadado enojou-me, a fábula da família perfeita, muito moderna, estilosa, trendy e mais não sei o quê, revelou-se ali mesmo uma patranha, apenas porque lhes faltou o arquivo dos filhos, aquele aviário onde os enfiam horas a fio, de onde os trazem a dormir no banco de trás dos veículos topo gama até casas sumptuosos situadas nos bairros caros das elites endinheiradas, afinal é tudo uma patranha, à primeira dificuldade vão-se abaixo, porque faltou o arquivo.
E se os mais novos tivessem consciência concreta e memórias daquilo porque passaram enquanto foram pequenos, depressa chegariam à conclusão sobre aquilo que os espera quando a sociedade achar que já não servem para nada, voltando então a ser arquivados, em lares, em casas de repouso, em antros manhosos ou simplesmente abandonados em camas de hospital.
Lá voltamos nós a tratar as pessoas como “coisas”, se isto do arquivar das crianças é patético, aquilo que fazemos aos velhos é atroz. Arquivados em “gulags” ali ficam apenas com direito a ocasionais visitas dos parentes, os que tem sorte, simplesmente à espera da morte, e é nessa situação que estão, são um arquivo morto, um peso que ninguém quer, vítimas desta sociedade sem tempo para lhes dar, qual equipamento gasto, arquivam-se.
E esta é nossa realidade diária. Arquivamos aqueles que supostamente mais de nós precisam, porque frágeis, porque carentes, negamos-lhes o calor da nossa presença, a beleza dos nossos olhos a franqueza do nosso carinho e a felicidade do som da nossa voz, arquivamos assim uma parte de nós, criando um ciclo vicioso um ciclo sem afectos, que nos apanhará no volta do tempo, pois esta monstruosidade pela qual somos os únicos e maiores responsáveis, será o nosso destino, pois os nossos filhos, seguindo os exemplos que lhes demos, farão por nos arquivar, quando nós também já não servirmos para nada.
A nossa sociedade poderia ter aproveitado esta pandemia para se reinventar, para dar importância real e concreta a valores nobres, criando laços de empatia que promovam relações saudáveis, que promovam uma sociedade saudável ao invés desta cada vez mais sociopatia homicida colectiva que nos atinge diariamente com exemplos cada vez mais escabrosos, não arquivem, cuidem, não arquivem, amem, não arquivem, respeitem!

Um abraço, deste vosso amigo
Barão da Tróia

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