É verdade que Portugal é um paraíso, se
comparado com alguns miseráveis locais desta pobre Terra, no entanto vezes há
que mais parece o purgatório. Uma das coisas que me parece absolutamente
confrangedora é esta nossa propensão para arquivar, adoramos arquivos, e tanto
adoramos arquivar que começámos a arquivar pessoas.
As escolas, da creche até ao secundário, são
os grandes arquivos dos mais novos, em especial dos mais pequenos que se deixam
por lá nesses grandes arquivos, o mais cedo possível e se vão recolher o mais
tarde que se pode, sendo que o ideal mesmo para aqueles progenitores que nada
fazem excepto polir cadeiras de esplanada, era que as creches e jardins-de-infância
estivessem abertos até à meia-noite e quiçá para além disso.
Habituámo-nos a isto, com a desculpa do
carreirismo profissional, da sacrossanta economia ou do importante emprego, se
é certo que o emprego é importante, não é porém mais importante do que as crianças,
do que os nossos filhos, os pais porém parecem ter-se desabituado dos filhos,
de os educar, de os aturar ou de brincar com eles, estou aqui a recordar-me de
uma entrevista que vi há tempos, efeito da pandemia, um casal, destes
modernaços, carreiristas, cheios de apps e gadgets, com três filhos, que de
repente se viram em teletrabalho com as crianças em casa, clamavam por
intervenção estatal, o ar enfadado enojou-me, a fábula da família perfeita,
muito moderna, estilosa, trendy e mais não sei o quê, revelou-se ali mesmo uma
patranha, apenas porque lhes faltou o arquivo dos filhos, aquele aviário onde
os enfiam horas a fio, de onde os trazem a dormir no banco de trás dos veículos
topo gama até casas sumptuosos situadas nos bairros caros das elites endinheiradas,
afinal é tudo uma patranha, à primeira dificuldade vão-se abaixo, porque faltou
o arquivo.
E se os mais novos tivessem consciência
concreta e memórias daquilo porque passaram enquanto foram pequenos, depressa
chegariam à conclusão sobre aquilo que os espera quando a sociedade achar que
já não servem para nada, voltando então a ser arquivados, em lares, em casas de
repouso, em antros manhosos ou simplesmente abandonados em camas de hospital.
Lá voltamos nós a tratar as pessoas como
“coisas”, se isto do arquivar das crianças é patético, aquilo que fazemos aos
velhos é atroz. Arquivados em “gulags” ali ficam apenas com direito a
ocasionais visitas dos parentes, os que tem sorte, simplesmente à espera da
morte, e é nessa situação que estão, são um arquivo morto, um peso que ninguém
quer, vítimas desta sociedade sem tempo para lhes dar, qual equipamento gasto,
arquivam-se.
E esta é nossa realidade diária. Arquivamos
aqueles que supostamente mais de nós precisam, porque frágeis, porque carentes,
negamos-lhes o calor da nossa presença, a beleza dos nossos olhos a franqueza
do nosso carinho e a felicidade do som da nossa voz, arquivamos assim uma parte
de nós, criando um ciclo vicioso um ciclo sem afectos, que nos apanhará no
volta do tempo, pois esta monstruosidade pela qual somos os únicos e maiores
responsáveis, será o nosso destino, pois os nossos filhos, seguindo os exemplos
que lhes demos, farão por nos arquivar, quando nós também já não servirmos para
nada.
A nossa sociedade poderia ter aproveitado
esta pandemia para se reinventar, para dar importância real e concreta a
valores nobres, criando laços de empatia que promovam relações saudáveis, que
promovam uma sociedade saudável ao invés desta cada vez mais sociopatia
homicida colectiva que nos atinge diariamente com exemplos cada vez mais
escabrosos, não arquivem, cuidem, não arquivem, amem, não arquivem, respeitem!
Um abraço, deste vosso amigo
Barão da Tróia
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