Pertenço a uma geração de filhos da
guerra. Somos filhos daqueles que foram fazer a Guerra, para defender
sabe-se lá o quê, nem isso agora interessa porque as neblinas do tempo
se irão encarregar de fazer esquecer os pequenos e grandes “quês” e os
“porquês” e tudo será reduzido a uma estéril e anónima contabilidade dos
manuais da história, até que tudo com o lento volejar das asas do
tempo, não passar de uma reminiscência, um velho álbum de fotografias
bolorentas e ratadas pela traça, com um distante bisavô ou trisavô.
Sou filho dessa guerra africana, de
calores e temores, feita no capim alto de noites quentes com pretas
embriagadas revolvendo-se em estertores de orgasmos propagando a senda
do mulato que o português ao que soa criou, no seu deambular pelos cinco
mares aportando a terras estranhas com elevados anseios espirituais,
mas com desejos bem terrenais.
Sou filho da guerra, falo só do que vi,
do que vivi, cresci a ouvir histórias de combates e de atrocidades de
anedotas e velhacarias. Dos meus, pai incluído mais tios, cinco foram
lá, felizmente nenhum lá ficou, fisicamente, escondido na terra que
dizem vermelha, ainda mais vermelha com o sangue desses que deixaram lá
os ossos, os meus vieram todos, mas muito deles ficou lá, nas chanas,
nas picadas, nos musseques e nas sanzalas, de Piche a Gadamael, em Mueda
ou na Pedra Verde, nos Dembos ou nas memórias dos primeiros cheiros do
Grafanil.
Sou filho dessa guerra que só ouvi
contar, a uns mais que outros, com o tempo comecei a perceber que era a
forma de exorcizar os fantasmas, os desvarios e a tristeza amargurada de
uma juventude que perderam como se da vida se tratasse, falo só do que
vi, do que vivi, dos gritos a meio da noite que me acordavam, – mas a
guerra já acabou há tanto tempo e tua ainda andas com isso – diziam-lhe.
Do consumo excessivo do álcool na
tentativa de adormecer os espectros, as emboscadas, os camaradas que se
finaram e que a cada ano que passa, são menos, falo só do que vi, do que
vivi, das discussões e dos choros em surdina, na raiva que se via nos
olhos, no suor que lhe vi correr na testa e no olhar de terror apesar de
estar em casa, de ser Inverno frio e de terem passado décadas.
Sou filho dessa guerra, falo só do que
vi, do que vivi, vi-o voltar à sua terra, para trabalhar duro, vi os
pais dos outros como ele esbracejarem no campo e nas fábricas, calados
com a sua dor, vi os país dos que retornaram, muitos sem nunca combater,
perderam tudo ao que se diz, deram-lhes empregos nos bancos, nas
escolas, nos transportes públicos, a ele, porém nada lhe deram, apenas
mais trabalho, já na reforma lá se lembraram dessa grande massa de
homens anónimos agraciando-os com umas migalhas na reforma.
Sou filho dessa Guerra, falo só do que
vi, do que vivi, só o comecei a perceber, a perceber as suas hesitações,
medos, às vezes quase loucura, à luz daquilo que guarda dentro dele,
aquilo que o rói, aquele verme negro chamado Guerra, comecei a perceber o
que faz a privação de sono, o acordar aos berros a fugir do inimigo, a
gritar como uma vez ouvi a meio da noite – faz fogo caralho, faz fogo…
pela manhã os seus olhos eram vermelhos de chorar e de não conseguir
dormir.
Sou filho dessa guerra, falo só do que
vi, do que vivi, conheço e conheci casos piores, homens aparentemente
pacíficos que por dá cá aquela palha armavam banzé, batiam nos filhos e
nas mulheres, bebiam até cair, mas o que descrevi está mesmo próximo,
falo só do que vi, do que vivi, afinal sou filho de uma guerra que já
acabou há mais de quarenta anos, mas que continua viva na mente de
muitos dos que por lá passaram. E eles continuam lá, a sofrer, a morrer e
a combater e por incrível que pareça a ter saudades daquele tempo!
Um abraço deste vosso amigo
Barão da Tróia
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