terça-feira, março 27, 2012

No frio da manhã - um desempregado!

O carro chegou, deslizando lentamente, parecia uma daquelas traineiras que pela manhã se arrasta pelo tapete prateado de regresso ao porto salvador. Estacionaram, mais acima, longe dos olhares da rua, eu debicava a minha sandocha matinal enquanto me intoxicava com as notícias mais recentes, debitadas a metro, por uns parolos jornaleiros, e as notícias mais antigas do jornal de ontem que não consegui ler atempadamente.

Entre uma dentada e outra ia olhando para o carro que continuava parado, lá dentro um casal, saíram entretanto, olharam em redor, curiosos, aquela hora pristina, tudo era silêncio, entrecortado pelo trinar de um ou outro melro malandro ou uma luta encarniçada de combativos pardais telhados, tirando isso, era um mar chão de silêncio.

Saíram do carro, ela decidida, ele mais tímido, curioso as coisas que nós percebemos quando atentamente nos dispomos a observar o outro que também somos nós. Num e noutro rosto via-se o receio, a desconfiança o medo reflectido em cada esgar em cada olhar sorrateiro medroso, li-lhes nos maneirismos, na interacção a cumplicidade objectiva de um casal, desempregados!

Ela abriu a mala do carro, com uma pequena faca de cabo amarelo, cortou um cordel, libertou-se daqueles atilhos e tirou uns papéis, pela cor seria uma daquelas revistas de distribuição gratuita, que nos entopem as caixas do correio. Via-se que estavam desconfortáveis naquela nova função, continuavam a olhar em redor comprometidos com algo que os incomodava, que não se percebia o quê, talvez a vergonha, a vergonha daquela nova situação.

Ele mais atarantado que ela, ela mais esfíngica, tanto quanto conseguem as mulheres ser fortes e sofrendo por dentro disfarçam com encantadora delicadeza, coisa que já nós os homens não conseguimos, abrimos o jogo, somos piegas. Ele corta outro maço de revistas, recolhe um grande molho, fecham o carro e afastam-se, curioso, desci as escadas, para apanhar um deles e meter conversa, estava decidido a provar que as minhas ilações estavam correctas, misto de egocentrismo narcisista e de curiosidade natural, abri a porta, o homem aproximava-se.

- Bom dia posso oferecer-lhe esta revista! Disse timidamente.

Claro que pode disse eu, meti conversa naturalmente, para o desarmar, falei-lhe logo da minha situação de desempregado, foi o que bastou, fiquei a saber em cinco minutos toda a sua história, comum hoje a milhares de pessoas honestas.

Estavam ambos desempregados, aquele era um biscate para poderem arranjar algum dinheiro, o resto era o comum, dívidas ao banco por causa de um apartamento ranhoso nesta cidade de trampa, uma situação preocupante, pior é que como não preenchem os requisitos para que o apoio social surta efeito, estão basicamente largados à sua sorte.

Aqueles são os rostos do desemprego, mas estas caras ninguém de São Bento vê, estas caras de desanimo, tristeza, desencanto, mágoa e sobretudo medo, o medo de cor escura que carrega os semblantes destas pobres gentes.

Despedi-me com uma qualquer laracha, desejando-lhes boa sorte! Eu também estou desempregado.


Um abraço, deste vosso amigo

Barão da Tróia

Sem comentários: